domingo, 22 de fevereiro de 2009

Gangs of New York e Kundun - Os Sonhos políticos de Martin Scorsese



Gangs Of New York e Kundun são dois filmes muito distintos entre eles e mesmo na carreira de Martin Scorsese. São para mim dois lados de uma mesma moeda. Como uma fantasia politica sobre géneses, países, pessoas e morte.
Kundun é, em primeiro lugar, um relato dos primeiros anos de vida do Dalai Lama. Simultaneamente uma biografia e um filme religioso. Trata-se da descoberta do 14º Dalai Lama, um homem santo, reencarnação do 13º. É um filme que lida com uma religião e um maravilhoso, em grande parte distante de Martin Scorsese, essa distância é utilizada para reforçar ainda mais o lado etéreo e maravilhoso do filme. Utiliza o personagem do Dalai Lama e as perplexidades próprias de uma criança a quem é atribuído o papel mais importante de um país e de uma religião, para nos mostrar esse mundo.



O olhar infantil é essencial, como um sonho, acontecimentos desenrolam-se. Uma inevitável corrente, muito fiel aos princípios tibetanos de que a vida está em constante mutação. Pé ante pé, vamos saindo do pequeno universo do Dalai Lama para a realidade do país Tibete, da II Guerra Mundial e da ascensão de Mao Tsé-Tung e subsequente invasão.
O que começa como um sonho maravilhoso… o nascimento de um homem santo, transforma-se num sonho de morte… Em que a pessoa do Dalai Lama, como líder religioso e político de um país, não só passa a ser o seu representante, como em consequência do seu exílio passa ele próprio a ser o país. O filme partilha a não-violência por ele defendida, e é extraordinariamente contido na representação da mesma, quase como uma expiação do próprio Scorsese (ele que é um mestre da violência), mas é essa aparente não-violência que o torna mais forte, mais explícito e consequentemente mais político. Quando, o Dalai Lama ainda pretende uma resistência passiva a um invasor que não olha a meios, é nos seus sonhos que encontra a resposta. Num plano extraordinário, a câmara começa no Dalai Lama e sobe, sobe, revelando o chão coberto de monges mortos. Este é o seu país, esta a sua herança. É simultaneamente o horror e a constatação de que ele é o país e enquanto ele existir o Tibete existirá… daí o exílio. Assim o sonho do início do filme, não é apenas um sonho passado, mas o desejo de um futuro.
Como o vento que arrasta a neve no topo da montanha, ou a corrente de um rio, assim é o filme de Scorsese…

“Lembro-me de tudo como se fosse um sonho” – é assim que começa a voz-off da personagem de Leonardo DiCaprio em Gangs of New York. E também este filme se apresenta como um sonho, uma fantasia sobre a criação de uma cidade, um país, uma democracia. É um filme sujo, violento, com uma montagem vibrante, sincopada, disruptivo, com histórias a surgir por todo o lado. Mais do que sonho é como o pesadelo da Democracia.



São os dois filmes de Martin Scorsese em que o sonho está mais presente, quer como referência directa, quer no próprio estilo. Curiosamente, não são sonhos individuais, são espelhos colectivos, políticos e que mostram todas as incertezas dos nossos tempos. Aquele que aborda o nascimento de uma democracia, vive na violência, na incerteza, até formal do próprio filme. Kundun é um filme que vive uma, ou talvez, várias certezas, a certeza do exílio e da violência a que foi sujeito todo o povo do Tibete. É por isso formalmente um filme mais calmo….
Olho para estes filmes e eles completam-se, reflectem o ser humano em toda a sua contradição individual e política… pensam cada pessoa não só como indivíduos mas inseridas no seu meio e como resposta e consequência do mesmo. E esse meio está sempre a manifestar-se sendo por isso impossível para cada pessoa não ser política. Porque todos os gestos são políticos, os filmes são políticos e até os sonhos são políticos.

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