quarta-feira, 24 de março de 2010

A infância entre rios e mares.

Ver o filme Where the wild thing are, foi para mim revisitar locais antigos. Nem sei se são locais que vivi, experimentei ou sonhei. Este é um filme que se atreve a sonhar, não como um adulto imagina uma criança, mas atreve-se a ser criança e a sonhar como uma.
É uma narrativa livre, livre daquelas estruturas que, quando se trata de um filme de aventuras infantis, faz com que os protagonistas passem por obstáculos como se de níveis de jogos se tratassem.
É um filme que habita e nos leva a habitar aquele local, o sítio dos monstros.
É voltar a experimentar a condição de ser criança, não como o sítio maravilhoso da infância inocente, mas o desafio constante que representa ser criança e estar perante um mundo que nem sempre a compreende e que nem sempre é compreendido. Crianças com fúrias, birras, ternura, amor. Crianças que magoam e que curam, que odeiam e ajudam. No fundo, tudo aquilo que todos nós (ou quase) passámos enquanto uma.
É raro ver um filme que se preocupa e procura essa condição, um estado puro de criança.
É um filme em corrida, em constante agitação, em procura. Daí os inúmeros travellings que acompanham o protagonista, daí a camara entrar em todos os locais, partilhar esse privilégio de estar nos cantinhos escuros, nos locais secretos. A descobrir, tal como Max (o protagonista) esses estados de alma, e partilhar da sua agitação e ser ela mesma uma criança que cria e descobre este mundo.



Este é um sítio de monstros povoado de imagens reconhecidas, como sonhos seguimos percursos que outras crianças já seguiram. Penso no Calvin & Hobbes, naquela enorme desproporção entre a criança e o amigo, mas simultaneamente na sua pose descontraída de dois grandes e íntimos amigos. E surge-me na memória a perseguição da Noite do Caçador, quando o monstro (Robert Mitchum) persegue as crianças rio abaixo. Enquanto fogem, são sempre protegidas pelas criaturas da noite, até que finalmente, levadas pelo rio chegam a um porto seguro. Também Max, faz uma viagem de barco, pelo mar, que o leva ao destino mais desejado, a um local de pertença. Curiosa inversão, pois enquanto as crianças da Noite do Caçador fogem do monstro (o papão), Max vai para a sua terra, tornar-se o rei deles. Ambos os filmes partilham este estatuto de filme único, de visão pura e inadulterada. Partilham também esse estado puro de medo, de birra, de ser criança. Povoados dessas imagens de infância que ocupam os imaginários. Cheios do mistério, da magia, os locais secretos, as caves, os esconderijos, os interiores e lugares seguros, os desejos, as fúrias e as ânsias reprimidas.



Por esses rios e mares, eles revisitam, mostram um estar primitivo, uma pulsão que bate em todos nós. Nesses rituais de nascimento e morte e voltar a nascer mostram os mistérios e contradições da infância, a sua crueldade e o seu maravilhoso. São filmes cujas imagens nos habitam como se de uma memória se tratasse, e poucos são os filmes com esses recantos secretos.

sexta-feira, 19 de março de 2010